Personalidade Introvertida: Uma Ficção
Por que gostamos tanto de criar categorias para as coisas nas nossas vidas? Uma crônica sobre a nossa relação com as classificações de personalidade.
Por Felipe Cotias
Este artigo foi postado originalmente em Medium.
“Nosso delírio fundamental hoje não é acreditar no que é apenas uma ficção, não é que levamos ficções muito a sério. É ao contrário: não levar as ficções suficientemente a sério. Você pensa que é só um jogo, é a realidade. É mais real do que parece.” — Slavoj Zizek.
Uma fase importante de autoconhecimento e consequente transformação na minha vida foi a descoberta de que minha personalidade se encaixava numa classificação chamada introvertida. Mais precisamente, um tipo conhecido como INFP.
Neste artigo, pretendo explorar como tudo isso não passa de ficção.
Mas calma! Ficções têm inspiração na realidade material, e nós as usamos “de verdade” para estruturar nossas realidades.
Por isso, ao mesmo tempo, minha intenção é contribuir para que você desenvolva uma relação mais suave com as descobertas da ficção adotada por você, ou seja, da classificação da sua personalidade, sejam essas descobertas derivadas do espectro introversão — ambiversão — extroversão, da tipologia de Myers-Briggs ou qualquer outra.
1. Por que classificamos as coisas
Andrômeda é o nome de uma galáxia “próxima” à nossa, a Via Láctea. Estima-se que ela contenha “apenas” umas 1 trilhão de estrelas. Ganhou o nome porque está na direção da constelação de Andrômeda, esta formada por 16 estrelas principais, 12 delas com planetas em sua órbita. A constelação, por sua vez, ganhou o nome em referência a uma personagem da mitologia grega, que foi acorrentada a um rochedo para ser devorada por um monstro marinho; salva e tomada como esposa pelo herói Perseu.
Peço que você reflita sobre nossos critérios para classificar e nomear coisas. Como é possível que consideramos como “uma coisa só” — um todo indistinguível — uma galáxia que tem em torno de 1 trilhão de estrelas, enquanto no nosso desprezível planetinha dividimos elementos que, na grande ordem das coisas, teríamos muita dificuldade em distinguir, como chão vs rochedo ou esposa vs solteira?
A resposta é óbvia. Dividimos e classificamos coisas na medida em que elas nos ajudam a lidar com aspectos específicos de nossa vivência. Para um astrônomo, nomear tudo o que está em Andrômeda de Andrômeda talvez seja pouco. Para leigos, é mais que suficiente.
Igualmente, para entender a formação de nosso corpo e a biologia da reprodução, somos tão mamíferos quanto os cachorros. Já se queremos entender por que temos alergias a certos alimentos, ou por que diferimos em cor da pele ou formato dos olhos, nos parece interessante distinguir europeus de asiáticos.
Só que essas narrativas são em grande parte fantasiosas, embaçadas. Sobre nacionalidade, um vídeo interessante circulou há um tempo mostrando a pessoas que expressavam antipatia por algum povo que elas hospedavam genes que julgavam pertencer a “outros”.
Você pode argumentar que, ora, se algum determinado traço sempre será reconhecido igualmente por todas as pessoas, ele passa a ser nossa realidade comum, e já não cabe tratá-lo como uma ficção.
Convido-o então a mais um exemplo. Loucura é um termo que encontra muitas dificuldades para classificação. Todos temos, em alguma medida, variações no funcionamento mental. Há alguns sintomas que, todavia, possuem aceitação geral: um adulto que interaja continuamente com pessoas que ninguém mais vê, ouve suas vozes e segue suas instruções, esse sim podemos afirmar que padece de um transtorno mais sério, certo? Por que então temos líderes espirituais como Chico Xavier ou Joana D’Arc citados até hoje como exemplos de vigor mental, mesmo por muitos daqueles que não compartilham de suas crenças?
Note que podemos classificar uma mesma percepção de fatos como loucura ou sabedoria de acordo com a maneira que vamos relacionar nossa percepção com outras ideias, no momento em que compomos uma narrativa. Se mal sabemos como anda nossas próprias cabeças, imaginem o quão pouco podemos inferir sobre o que realmente acontecia na cabeça de Joana D’Arc quando escutava vozes que diziam que ela deveria libertar a cidade de Orléans?
Só podemos chegar a um consenso sobre uma classificação porque o ser humano é um animal capaz de inventar histórias. Essas histórias — inspiradas na realidade material, porém independentes dela — nos ajudam a construir sentidos para nossas experiências.
2. Classificação não é obrigação
O fato de diferenciarmos mamíferos de répteis para entender por que uns produzem leite e outros põem ovos não muda o fato de que podemos nos estender como um lagarto ao sol; ou, se distinguimos pessoas de cachorros pela capacidade superior de processar lógica e linguagem, não estamos proibidos de passar um dia inteiro querendo apenas comida, cafuné e correr atrás de uma bola.
Dificilmente alguém se aproximará de uma pessoa lagarteando ao sol e dirá “saia daí, você é um ser humano, não um réptil!” Parece tolo? Avancemos para uma pessoa que descobre ter ascendência italiana, e se compraz com a explicação para seu amor pelas massas e culinária mediterrânea. Deveria essa pessoa buscar na internet a melhor entonação de “mamma mia!”, passar a falar alto, torcer pela seleção italiana na Copa do Mundo?
Por que então uma pessoa que se descobre introvertida, progredindo numa carreira que envolve múltiplas interações sociais, deveria automaticamente rever sua escolha? Ou uma pessoa que se apaixonou por outra há meses agora se questiona se seus tipos de Myers-Briggs são compatíveis?
O ponto que desejo fazer é: a classificação é uma narrativa posterior ao fato. Ajuda a compreendê-lo, mas só o altera se você deliberadamente desejar isso.
Ou seja, durante seu percurso para construir e progredir sua personalidade, você vai se valer de narrativas diversas acumuladas no decorrer do caminho. Parte dessas narrativas podem ser as classificações que você adota, e elas podem sim te fazer muito bem.
Dizem que uma pessoa que deseja muito atingir certo sonho deve primeiro contar a si mesmo a história de que já é capaz de obtê-lo. Passeia pela minha memória o conselho do Neil Gaiman, “finja que você é bom no que você faz” — primeiro você se faz escritor, depois você escreve. Todo cirurgião, algum dia, na primeira vez diante de uma mesa de operações, teve que fingir ser cirurgião. Ou seja, se uma ficção de identidade te faz sentir bem e pode até mesmo te levar a conquistas de vida, abrace-a!
Mas entenda: o fato de você se reconhecer como brasileiro, introvertido, sexualidade x, gênero y, portador de ADHD, etc., não significa que você é obrigado a atuar de acordo com o que é esperado dessas classificações. Elas ajudam você a se nortear com base em algo com que você reconheceu que faz bem se identificar. São bússolas, não grilhões.
Lembro que há alguns anos as pessoas reclamavam quando participavam de uma malfadada dinâmica de grupo ou de um teste vocacional: “como esse psicólogo pode achar que sabe como serei em toda a minha carreira profissional com base num teste de algumas horas?”
Hoje, desesperados por validar nossa existência no olhar do “outro”, esse ser místico sempre presente em nossas angústias, nós mesmos fazemos papel do psicólogo juiz, e nos autossentenciamos a uma única maneira de ser. Suspiramos ao conceder à hercúlea missão de nos fazer reconhecíveis pelo outro a mãozinha de apenas jogar 4 letras no Google.
Em tempos de políticas baseadas em identidades, estamos sempre correndo o risco de converter descobertas pós-fato em obrigações basilares de comportamento.
Exemplo de lógica “narrativa pós fato”:
“Decidi não comer mais animais. Abro exceção para frutos do mar, porque aprecio muito e a meu ver eles não sentem o mesmo grau de dor que os outros. Me chamaram de “vegetariano”. Achei interessante entender como alguns movimentos vegetarianos têm bons fundamentos para que não se comam animais. Gostei da nomenclatura, vou pesquisar mais.”
Exemplo de lógica “fato pós narrativa”:
“Decidi não comer mais animais. Abro exceção para frutos do mar, porque aprecio muito e a meu ver eles não sentem o mesmo grau de dor que os outros. Me chamaram de “vegetariano”. Descobri que vegetarianos também não comem fruto do mar. Eita, tenho que parar imediatamente de comer frutos do mar!”
E temos tantas classificações para encaixar uma personalidade… Introvertido ou extrovertido? Qual seu signo? É Millennial? Visual ou auditivo? Irmão maior ou menor? E o tipo sanguíneo? Já ouviu falar de Big Five? Em qual estado você vive? Porque mineiro é desconfiado, baiano é relaxado, carioca é descolado, paulista é sério…
3. A descoberta da introversão
Vou ilustrar essas ideias com um exemplo pessoal.
Havia uma situação que costumava me perturbar. Sempre amei o universo dos livros, mas ao mesmo tempo sempre detestei livrarias modernas e, de uns anos para cá, a comercialização de livros em geral. Por que acontecia isso? Não existiria uma incoerência entre meu prazer ao ler um livro e minha repulsa ao processo de comprá-lo? Como era possível que amigos e conhecidos que também apreciavam a leitura adoravam mostrar fotos de sua satisfação em eventos de livros, enquanto que para mim uma morte lenta e dolorosa parecia mais agradável?
A descoberta da introversão iluminou, para mim, esse tema. O que me repele são os excessos de estímulos, as capas coloridas, os amontoamentos de obras, as promoções histéricas, o fetichismo da compra, tudo aquilo que se relaciona com o universo exterior, em contraste com a amabilíssima leitura em si, o universo interior. Esta descoberta me permitiu encontrar meios alternativos para obter livros: o Kindle com sua maravilhosa ausência de cor, livrarias-sebo (as de rua bem pequenas são as que mais me atraem), a preferência por capas sóbrias de coleções antigas, entre outros.
Isso significa que, por descobrir-me introvertido, nunca mais vou entrar numa livraria comercial? Claro que não. Mas agora já entendi o que não gosto; posso otimizar meu tempo lá dentro, comprar o que preciso e, o mais importante, não me preocupar se meu amor pelos livros está abalado só porque quero sair dali o mais rápido possível.
Tampouco significa que outros introvertidos não terão relações distintas com livrarias, e talvez considerem um evento literário, para mim o nível máximo do horror, um éden do gênero de socializações que lhes agrada.
4. Desculpe, “O Segredo”, mas querer não é poder
Precisamos absorver com cuidados frases como “um introvertido não gosta de realizar atividades que não gerem um profundo senso de identificação interior”. Ora bolas, lembro que houve uma época que eu tinha que ir para a escola bem na hora do Thundercats. Para os mais novos, imaginem que é o equivalente de seu anime favorito, quando não existia internet para se assistir quando quisesse. Podem imaginar qual atividade me gerava mais “identificação interior”?
Gostar ou desgostar de coisas não significa que o mundo exterior está apto a nos fornecer exatamente o que nos apraz, bastando evitar o que nos desagrada. É preciso despender energia e negociar o que desejamos.
Felizmente, reconhecer que temos essa faceta introvertida apoia o autoconhecimento sobre nossos interesses, e saber o que pedir é o primeiro passo para uma negociação proveitosa. O que não significa que vamos sempre obter tudo o que desejamos.
Sentir-se esgotado com interações sociais não é desculpa para prescindir delas. Significa apenas que podemos medir com mais acerto sua frequência, intensidade e os períodos de recuperação que melhor se adequarão às demandas de nosso espírito.
5. Eremitas da internet
Em grupos de introvertidos na internet, observo interações de pessoas que alegam desgosto ou dificuldades quanto à socialização. Ao mesmo tempo, se expõem, fofocam, oferecem e aceitam apoio — ou seja, executam todas aquelas atividades que são requeridas para a supostamente difícil socialização.
Não tenho como deixar de evocar a esquete dos eremitas, do grupo de humor Monty Python, em que homens iluminados, escapando da superficialidade da vida social nas cidades, repetem exatamente os mesmos comportamentos indesejados em suas “isoladas” montanhas…
Entretanto, por mais que racionalmente compreendamos o afeto das interações eletrônicas, nas redes sociais, elas não substituem nossa necessidade constitutiva de relações com proximidade. Por milhares de anos, nosso organismo aprendeu a estimar e depender do afeto no som de uma voz, numa troca de olhares ou num abraço. Apenas secundariamente conseguimos decodificar esses efeitos ao nos servir da linguagem escrita.
Ou seja, se você se identifica com um eremita da internet, deixo aqui a reflexão que você tem muito a ganhar ao arriscar, no tal mundo real, interações bastante parecidas com as que você executa perfeitamente online. As habilidades você já tem; o que talvez falte seja atitude, coragem ou paciência — e isso se desenvolve treinando, um passo de cada vez.
Por falar em humor, não podemos subestimar o poder da comédia para nos unir em torno das ansiedades que compartilhamos como sociedade moderna. A esquete “Despedida”, dessa vez dos nossos humoristas do Porta dos Fundos, apresenta uma mensagem simples sobre como muitos de nós sentimos a mesma aflição diante de certas “obrigações” sociais.
Ao mesmo tempo, ela indiretamente nos oferece uma lição sobre como enfrentar os bloqueios que nos agoniam diante de socializações: ao reconhecer que os desconfortos são mútuos, podemos falar abertamente sobre eles — até mesmo em tom de piada.
6. Conclusão
Nossas diferenças classificadas são ficções narrativas posteriores a quem já somos, que nos proporcionam deliciosos “a-has”, “agora eu entendi!”, mas não significam uma diretriz de comportamentos obrigatórios.
Imaginemos uma pessoa que não gosta de alguma coisa a respeito de sobremesas geladas, e por isso sempre as evita, ou arrisca comê-las com desconforto, receando passar pela tal coisa que ela não gosta, mas também não sabe bem o que é. Se um dia ela percebe que o que não gosta, na verdade, é de sorvete de morango, essa descoberta deveria proporcionar a ela uma libertação, não um aprisionamento. Agora ela sabe que pode comer profiteroles sem medo; se um dia decidir provar um sorvete de morango para agradar a sogra, saberá comedir a quantidade.
Assim funciona o autoconhecimento — ele nos dá mais ferramentas para escolher nosso curso de ação. Não é uma nova caixa para limitar nossas possibilidades de maneiras alternativas.
Tampouco deve ser usado para escudar-se das dificuldades enfrentadas por qualquer pessoa no mundo moderno, para obter aquilo que todos necessitamos: alimentos, sono, segurança, cuidados, trocas de afeto, realizações pessoais e profissionais.
Tem que conversar? Tem. Tem que se expor? Às vezes sim. E se, passados alguns meses ou anos, um dia você se pegar falando alegremente de sua vida para uma grande roda de pessoas pouco conhecidas, não precisa se chibatar. Você também tem direito a isso, tá tudo bem!
Foto de Kawin Harasai em Unsplash
Carioca que alterna carreira jurídico-comercial mundo afora com os prazeres e descobertas da escrita artística.