Um olhar evolucionista sobre a personalidade: por que os introvertidos existem?

A Teoria Evolucionista da Personalidade considera que a presença constante de indivíduos introvertidos na população tem uma razão.

A personalidade é um construto utilizado para estudar, classificar e explicar diferenças entre os indivíduos em termos de motivação, comportamento, afetividade, dentre outros fatores psicológicos. Por constituir um dos conceitos mais complexos da Psicologia, ele é objeto de diversas abordagens que tentam investigá-lo sob diferentes perspectivas, todas com o objetivo comum de compreender o porquê de as pessoas serem psicologicamente diferentes entre si.

Diversos modelos têm sido propostos na tentativa de descrever e sistematizar as principais características psicológicas (traços ou dimensões) que predispõem as pessoas a pensar e agir diferentemente umas das outras, assim como as categorias de personalidade (conjunto mais ou menos estável composto pelos diversos traços e dimensões em diferentes níveis) em que as pessoas se subdividem. Um desses modelos tem sido proposto pela Teoria Evolucionista da Personalidade (TEP), que considera a variação da personalidade entre os indivíduos da espécie humana (e também de outras espécies) como resultado de adaptações frentes aos desafios impostos pelo ambiente ancestral, no decorrer dos muitos anos da evolução, aos imperativos biológicos de sobrevivência e reprodução (os dois principais componentes motivacionais do comportamento humano e animal sob uma perspectiva evolucionista)

Nesse sentido David Buss, um dos principais teóricos da TEP, considera a personalidade humana como sendo composta por 5 traços fundamentais, de maneira bastante similar ao modelo de personalidade conhecido como Big Five:

  • Surgência/extroversão/dominância: tendência à sociabilidade, à autoconfiança e à procura de estados emocionais positivos.
  • Amabilidade: tendência à disposição para ajudar e cooperar com os outros.
  • Conscienciosidade: tendência ao comprometimento com o trabalho, à orientação para metas e à meticulosidade.
  • Estabilidade emocional (oposto de neuroticismo): capacidade de lidar com o estresse, a ansiedade e o medo.
  • Abertura à experiência/intelecto: tendência à experimentação de situações não rotineiras, à inovação e à criatividade/capacidade de resolução de problemas.

Cada um desses traços, para Buss, possui uma função adaptativa que ajudou nossos ancestrais a sobreviverem no ambiente de savana (onde evidências científicas mostram que nossa espécie surgiu), possibilitando que os indivíduos pudessem não apenas explorar o ambiente em busca de alimentos e outros recursos de forma segura, evitando predadores e outros perigos, mas também ter sucesso no processo de acasalamento (conquistar ou atrair uma parceira sexual para reprodução e parentagem) e desenvolver as habilidades sociais específicas requeridas pela vida em grupo.

Nesse modelo, a introversão, enquanto o oposto do traço de surgência, poderia ser caracterizada como uma tendência à evitação de contatos sociais, a um rebaixamento de autoconfiança e uma maior vulnerabilidade a estados emocionais negativos (embora esta última característica não esteja necessariamente associada à introversão, uma vez que está mais vinculada ao neuroticismo, ou seja, a um baixo nível de estabilidade emocional).

Embora possamos pensar que a extroversão favoreça comportamentos mais vantajosos do ponto de vista evolutivo, uma vez que indivíduos extrovertidos tendem a possuir maior status na hierarquia social, mais aliados sociais (logo uma rede social de proteção maior) e atrair mais parceiros sexuais (o que contribui para um maior número de descendentes gerados por esses indivíduos), a Teoria Evolucionista da Personalidade considera que a presença constante de indivíduos introvertidos na população tem uma razão.

Quais as vantagens evolutivas da introversão? Retornando às nossas origens …

A teoria da evolução biológica inicialmente proposta por Darwin considera que todos os seres vivos são naturalmente “projetados” para duas principais funções: sobrevivência/autopreservação e reprodução. Tal “design” natural seria resultado de um processo chamado de seleção natural, por meio do qual indivíduos que apresentam características (físicas ou comportamentais) que proporcionem maior vantagem no desafio de sobreviver em determinado ambiente têm maior chance de reproduzirem-se e passarem adiante seus genes, tornando tais características mais frequentes nas gerações seguintes. Ao mesmo tempo, indivíduos com características não vantajosas para a sobrevivência no ambiente sobrevivem e reproduzem-se menos, diminuindo a frequência dessas características nas gerações seguintes. O resultado é que, ao longo do tempo (estamos falando da ordem de milhões de anos), os seres vivos são “moldados” pelo ambiente para possuírem características que os permitem adaptarem-se a ele, ou seja, sobreviver e reproduzir com eficiência.

Dessa forma, é fácil pensar que a extroversão (ou surgência) seria um traço comportamental vantajoso e adaptativo para o Homo sapiens, uma vez que somos uma espécie eminentemente social cuja organização está assentada sobre uma complexa rede de relações entre indivíduos. Se pensarmos em nossas origens como uma espécie primata sobrevivendo no ambiente muitas vezes hostil das savanas africanas, podemos dizer que uma das maiores vantagens adaptativas de nossa espécie foi não apenas nossa elevada capacidade cognitiva, mas nossa habilidade de organização social. Como explicar então que indivíduos “pouco sociais” como os introvertidos tenham se mantido entre nós até hoje se naqueles tempos é possível supor que um indivíduo socialmente isolado, retraído ou arredio tivesse poucas chances de sobrevivência e reprodução?

A resposta está no ambiente

Qualquer característica comportamental (incluídos aí os traços de personalidade) pode ser potencialmente vantajosa ou desvantajosa a depender das condições ambientais. E aqui refiro-me não só ao ambiente físico, mas também e particularmente ao ambiente social, de igual importância para uma espécie como a nossa. Logo, embora a extroversão seja um traço de personalidade que predisponha o indivíduo a comportamentos sociais benéficos para si ou para os outros, também o predispõe a comportamentos deletérios para os quais indivíduos introvertidos são mais prevenidos.

Apesar de ser razoável supor que nos nossos tempos ancestrais os indivíduos extrovertidos fossem os líderes, que conduziam os indivíduos pelo ambiente, eram cobiçados sexualmente e exerciam poder e influência em outros membros do grupo através de persuasão ou coerção, também é possível pensar em situações em que a extroversão tivesse um efeito não muito desejável. Extrovertidos tenderiam, por exemplo, em seu ímpeto de exploração, a se exporem a mais riscos físicos, pondo em risco sua própria sobrevivência ou a de seu grupo, além de tenderem a ser sexualmente mais promíscuos, o que, se por um lado gera mais descendentes, por outro também leva a um maior risco de contração de DSTs e a famílias menos estáveis.

Extrovertidos também tenderiam a se envolver em maiores conflitos em seus relacionamentos pessoais, seja por sua posição social elevada, que levaria outros indivíduos (provavelmente também extrovertidos) a tentarem “destroná-los” de sua posição social hierárquica superior e assumi-la (o que em tempos ancestrais significava combate físico e muitas vezes morte) ou simplesmente por tenderem a ser menos moderados em suas formas de interação e comunicação, construindo alianças mas, ao mesmo tempo, conquistando inimigos.

Indivíduos introvertidos, por outro lado, embora formassem redes sociais menores do que as dos extrovertidos, tendiam a formar redes mais estáveis, mais sólidas e mais íntimas, e menos conflituosas. Além disso eles provavelmente constituíam bons parceiros pela sua predileção intrínseca por relações sociais mais íntimas e confiáveis, sendo também objeto de cobiça sexual por parte de indivíduos que preferiam acasalar-se com indivíduos que fosse provedores mais consistentes, e não com os extrovertidos, que muitas vezes poderiam tender à deserção (abandono da prole) ou à infidelidade. Nesse sentido, os introvertidos podem ter sido objeto de seleção sexual, que é um processo que ocorre concomitantemente à seleção natural e por meio do qual determinado traço é perpetuado nas gerações futuras de uma população quando os indivíduos do sexo oposto preferem se reproduzir com indivíduos que o possuem.

Além disso, apesar de por um lado a introversão poder ter significado uma menor propensão à exploração do ambiente e, portanto, um menor aproveitamento de oportunidades para a obtenção de recursos alimentares (e maior probabilidade de morte por inanição), por outro representava menor exposição a riscos. Em um ambiente ancestral em que a espécie humana podia ser objeto de predação de outros animais, a maior precaução dos introvertidos pode ter sido uma característica vantajosa em termos de sobrevivência.

Concluindo

Assim, podemos afirmar que nenhum traço de personalidade é vantajoso por si só, mas em função de sua capacidade de proporcionar ao seu detentor a capacidade de operar de forma eficiente em seu ambiente (mais uma vez: físico e social) que, via de regra, está em constante mudança. Tanto a introversão quanto a extroversão, portanto, compõem um espectro que foi naturalmente selecionado não apenas em nossa espécie, mas em diversas outras, por ser vantajoso para a espécie como um todo possuir em sua população indivíduos “ousados e exploradores” e outros “precavidos e conservadores”.

Embora a predominância de um ou do outro traço possa variar na população, a presença dos dois é importante no contexto de um ambiente que muda em direções não previstas e que a qualquer momento pode tornar um mais vantajoso do que o outro. Essa perspectiva ajuda-nos a vislumbrar a introversão não como um traço mal adaptativo ou patológico, conforme muitas vezes nossa sociedade moderna leva-nos a crer com suas constantes glorificações às personalidades extrovertidas, mas como uma faceta funcional de nossa natureza humana.

Foto de Alex Blăjan no Unsplash

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